Dizem que escrever é uma forma de Auto amor.

Mas eu acho que escrever nada mais é do que emprestar a própria atenção a si mesma.

É o olhar para dentro, e ver o que temos de mais íntimo e criativo dentro de nós.

Já ouvi por aí dizer que “escrever poupa-nos idas ao psiquiatra”.

Assim sendo…

Pouparei decerto idas ao psiquiatra. E espero com isso levar alegria e amor a todos vocês.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Ela não esperava que ele se lembrasse.
Ele sabia que era o aniversário dela, lembrava-se até da hora em que ela tinha nascido. Andou todo o dia com o telemóvel na mão, no visor lia-se o nome dela, mas faltava-lhe o mais importante… a coragem para finalizar a chamada.
O dia já ia longo, as primeiras estrelas apontavam no céu, mas ela não tinha vontade de regressar para uma casa vazia. Os colegas até lhe fizeram um almoço surpresa, a mãe ligou-lhe logo cedo, os amigos ligaram para a convencer a comemorar num bar, mas ela boicotou as investidas, alegando que estava cansada e tinha trabalho logo cedo.
No carro o rádio anunciava as 21 horas, alertava para as notícias, mas o pensamento dele estava longe dali. A cena que ele imaginava incluía beijos, abraços, risos, flores, jantar e sexo… Não necessariamente por esta ordem. Sorriu e voltou a olhar para o telemóvel…
Ela resolveu voltar a pé para casa, tinha tempo e as noites ainda eram amenas. Voltou a pensar nele, curiosamente sentiu uma certa nostalgia. Encolheu os ombros, ajeitou o cabelo e respirou fundo, até ontem achava que tinha tomado a decisão certa, hoje já não tinha tanta certeza. Sentiu saudades…
Ele lembrou-se da última noite que passaram juntos, onde os beijos foram trocados por palavras cruéis, os abraços por gestos brutos, e por toda a casa ficaram espalhados pedaços de amor por fazer, no fim da noite só a ausência dela permanecia intacta.
Doíam-lhe os pés, estava cansada, triste, só… sentiu vontade de chorar, até o teria feito se não fosse a sua vizinha meter conversa, normalmente teria gostado de uns minutos de cavaqueira, mas hoje não lhe apetecia, arranjou uma desculpa e subiu.
Ele continuava às voltas pela cidade, por momentos pensou que se ao menos soubesse onde ela morava… Abanou a cabeça com violência, se não tinha coragem para lhe ligar, quanto mais ir a casa dela. Não era covardia, simplesmente respeito pela vontade dela, só não sabia se o “não me procures mais” englobava o dia de aniversário.
Entrou em casa, descalçou os malvados sapatos, colocou a água a correr na banheira, despiu-se e entrou na água quente cheia de espuma, fechou os olhos e relaxou. Estava tudo perfeito, até que ele invadiu-lhe novamente o pensamento… diabos, pensou ela… hoje não! Até que uma mensagem a despertou da letargia… olhou para o visor e o seu coração quase parou de bater.
“Ponderei durante horas se o devia fazer ou não, mas resolvi sabotar o silêncio imposto por ti. Parabéns Sara, espero que estejas feliz, ass: André”
Chorou… não, não estava feliz… sentia a falta dele todos os dias, mas era orgulhosa demais para o admitir. Afinal ele não esqueceu o dia, ele não a esqueceu. Saltou da banheira num pulo, e mesmo molhada respondeu-lhe:
“Senti tanto a tua falta, vem…”
A visão embaçada pelas lágrimas não o deixavam ver bem a estrada, o coração estava a ponto de sair disparado pela boca, o corpo tremia e chamava por ela.
Hoje, ele tinha a certeza… o amor não ficaria por fazer…

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A azáfama nos bastidores do evento é tão grande que podia equiparar-se a Paris, Milão ou Nova Iorque, mas não… é Lisboa, depois de alguns anos ela está de regresso à cidade que a viu nascer. Sentada na mesa de maquilhagem olha fixamente para a frente, embora lá esteja um espelho, Haras não se vê reproduzida nele, o seu olhar acompanha a sua mente numa viagem à infância.
Nascera numa comunidade pobre na periferia de Lisboa, filha de mãe holandesa e pai africano. Cedo descobriu que não iria ter uma vida fácil, o seu pai morreu quando ela tinha 5 anos e a partir daí tudo se complicou quando a mãe começou a chegar a casa cada vez mais tarde, deixando-a aos cuidados da avó paterna.
Haras (nome escolhido em homenagem à avó materna {Sarah} que ela nunca conheceu), tinha os olhos verdes da mãe e a tez morena do pai, que lhe dava um ar estranho, e que a fazia chorar compulsivamente sempre que era alvo das brincadeiras dos colegas.
[Mais tarde viria a descobrir que o seu ar estranho em Paris se chamava exótico].
Sempre fora uma criança tímida, que preferia ficar em casa em vez de brincar na rua, escondia-se no quarto humilde e sonhava em ser actriz. Quando tinha 10 anos a mãe morreu de overdose e ela foi entregue definitivamente à guarda da sua velha avó, estava só no mundo!
Quando tinha 15 anos foi passar uma temporada na praia ao abrigo de uma instituição que ajudava crianças órfãs, de manhã ajudava a cuidar dos mais novos e à tarde aproveitava para tomar longos banhos de mar. Foi numa dessas idas à praia que conheceu alguém que mudaria a sua vida para sempre.
Ana era fotógrafa de uma conceituada marca de lingerie e viu naquela adolescente uma modelo com potencial. Alta, pernas longas, magra, morena sem chegar ao tom mulato e olhos tão verdes como aquele mar ao final do dia…
Haras lembra-se do dia em que ela lhe perguntou se lhe podia tirar umas fotos, encolheu os ombros e movimentou a cabeça afirmativamente, simplesmente não se importava.
A partir daquele dia tudo mudou, viu a sua avó assinar uns papéis, mandaram-na fazer a mala e seguiu com a fotógrafa num carro enorme rumo a Paris.
Foi viver num apartamento com mais três raparigas, estudava de manhã numa escola de moda e praticava à tarde numa passerelle de um velho teatro. Viveu dias difíceis, chorou noites inteiras com saudades da avó, mas sobreviveu e venceu. Desfilou para os maiores costureiros do mundo, viveu em Milão, Munique e Nova Iorque, Paris era a sua casa, nunca mais voltou a Lisboa e não tinha perdoado a avó por a ter cedido aquela gente.
Hoje tem um estatuto que poucas conhecem, é modelo exclusiva da Casa Versace.
Hoje tem um camarim só dela, uma cadeira forrada a veludo verde, e fotos espalhadas pelo mundo.
Hoje tem uma conta bancária com tantos zeros como a idade que tinha quando perdeu a mãe.
Hoje tem quase trinta anos… e continua só…
Hoje escolheu Lisboa para encerrar a sua carreira de modelo.
Hoje será a última a desfilar, encerrará o desfile com um modelo de noiva exuberante.
Hoje fará as pazes com o passado…
Batem-lhe à porta anunciando que está na hora, ela levanta-se lentamente, calça os sapatos, olha-se mais uma vez ao espelho, retoca o batom, agarra com as duas mãos no vestido imaculadamente branco e lança-se no corredor que a levará à derradeira viagem pela passerelle.
Os fotógrafos acotovelam-se para conseguir a melhor foto, as pessoas cochicham entre elas, Haras não sabe se falam dela ou do vestido, dá mais duas voltas e regressa com todas as modelos e o estilista, agradecem ao público e retiram-se…
Respira fundo, e dirige-se apressada para o camarim. Declina o convite para o cocktail alegando sentir-se cansada, no fundo quer fugir dos paparazzi e das perguntas indiscretas. Veste umas calças de ganga, uma t-shirt, calça uns ténis, retira toda a maquilhagem, apanha os cabelos num coque pega na mochila e sai. Já na rua procura um táxi, aquela hora não é fácil, afinal está em lisboa e não em Nova Iorque, sorri e caminha pela avenida até que aparece um, faz-lhe sinal e ele para. Sorri-lhe, mas ele não retribui, pergunta-se se estará aborrecido pela hora tardia se pela cor dela. (Poucas coisas mudaram em Lisboa). Entra no táxi e diz-lhe o destino, agora sim ele está mesmo aborrecido, Haras nota que ele resmunga e ela sorri por dentro. Passados uns minutos ele pára o táxi:
"Pronto menina, chegamos a Chelas, não sei se reparou que é madrugada, este local não é seguro, tem a certeza que quer ficar aqui?"
Tenho! Eu nasci aqui, responde com orgulho.